Tenho tido momentos de prazer quando escrevo,
momentos onde me largo pelas folhas do caderno
e adormeço - acordando - feito caligrafia e palavra,
verbo e conhecimento.
São pequenos momentos de absoluto prazer,
o único real prazer - posso-o dizer - nesta vida.
Do que escrevo,
desse ofício estranho,
resolvo tudo
e descubro novamente o nada
que me guarda o todo da vida:
o momento, o presente,
o reconhecimento que não vale a pena sofrer
pelo que se nada pode fazer mais.
Se a vida me é difícil por saber deste ofício
não sei bem.
É aquela coisa que a maior salvação é a maldição
e a maior maldição é saberes-te dono da tua própria salvação.
Sem este ofício talvez não me deixasse cair tanto,
talvez reconhecesse que a vida é deveras mais importante
que a imaginação.
Mas é?
Claro que não!
Ora, eu sou quem sou
porque me larguei pelo que crio e criei.
Alegoria acesa de meus sonhos
tornados realidade
com a disciplina e sensibilidade
de os ouvir em calma
e sozinho
sem nada mais a responder a algo
ou ninguém.
A família...
A família é uma dor de cabeça imensa!
Pessoas que te demais viram e vêem
desde criancinha ao adulto que te tornaste.
Mas vêem eles mal...
Fiz as pazes com tudo isto afinal,
apesar de tudo,
gosto de quem me criou e é minha família.
Mas é como um adulto beber leite:
depois de feito Homem
para quê a família?
Há uma parte de mim
bem assim...
E tenho pena de não levar essa voz
à absoluta dignidade de existir
e não poder mais voltar atrás.
Mas sempre volto afinal
e desgraço-me em pesos que não são reais,
orgulhoso que sou,
se falho
falho-me até disso me esquecer
ou perdoar.
É fudido ser eu,
sempre o disse e sempre o direi.
Não me fodam a cabeça!
Pensava ter encontrado
o santo graal
visto que minha vista avistava
todas as ínfimas pequenices e grandices
desta vida;
a ligação era tão suprema
que nem descanso havia,
o dormir e estar acordado quase o mesmo,
a certeza de estar em perfeita sintonia com tudo
uma naturalidade tão intensa
que queimava qualquer coerência
ou possibilidade de expressar
nitidamente a outra pessoa
o que me estava a acontecer.
Mas eu sei o que me estava a acontecer...
Absolutamente dado à vida
ela se estava a oferecer também
por completo a mim.
Viver sem um milímetro de medo,
absolutamente entregue à vida.
Sei que é coisa rara e doida
neste mundo de infelicidade consumista
mas eu que tão pouco acredito nisso
enlouqueço apenas com o meu sonho
e vivo.
Depois a coisa cai
e há a ressaca do sonho se desmoronar.
Minha intuição torna-se desilusão
e frustracção
e a honra que tanto prezo
e sempre, de uma ou doutra forma, consegui
vira-se cobardia para comigo mesmo e vida.
Mas já vivi isto
ou algo parecido antes...
Sei que é um erro estar demais aberto assim à vida.
Pelo menos se se não tem dela saída física,
isto é, economia para viajar,
mudar de lugar,
conhecer novo
para continuar,
ser desconhecido
por conhecer um novo lugar
que te mostra um novo eu
que continua perpétuamente.
Pobrezito Portugal que te colas a mim...
Esse dramatismo que também amo
é das coisas que mais desprezo em ti.
Nada cresce aqui
senão esta melancolia,
este sofrer a alegria a algo diferente.
A tua sabedoria é a pobreza.
Sabes ser pobre,
foste-o sempre,
o és ainda
e o continuarás a ser.
A tua riqueza está na tua pobreza
e é essa pobreza que em parte procuro descobrir.
Pobreza essa da qual já fui muito rico
e sei delicadezas supremas
que desafiam o mundo "lá de fora"
de uma maneira esmagadora.
Mas se se quer um pouco mais,
alguma estabilidade e decência, como que, familiar,
logo desprezas coisas dessas
- em mim.
És pobre e ai de quem tente ser rico aqui!
Deixa de te sentir a riqueza...
Daí o turismo do qual agora estás cheio
ser perverso demais para mim.
Toda a tua arte é delicadeza, demora,
poesia e elegância que sabem do sofrimento
de nem sempre - ou quase nunca - conseguir o que se quer.
Essas almas por aí a sorrirem demais
não te vêem a riqueza
que o bêbado perdido no canto da rua
conhece bem.
Eu sei,
eu sei...
Torno-me agora um pouco
esse velho do restelo
porque tento fugir de ti um pouco
ó Lisboa.
Não sei se conseguirei
mas sei que me já fizeste todo o mal que devias
e agora só me cansas.
Quero além
não mais na cabeça tua
mas noutro universo,
cultura, latitude.
Em ti tudo é para dentro.
Fui-te ao filho
- Brasil -
e todo se largou de ti para fora,
com muita ajuda dos africanos que lá meteste à força
e os índios que já lá estavam antes.
Vês?
Na verdade ninguém quer saber de ti
e é por isto mesmo que te agarras a quem
mais sonha, ama e vive.
Enlouqueceste já tantos...
Alguns meus amigos
como aquele que há anos era um jovem "bem sucedido",
feliz responsável de um bar que espalhava e abraçava alegria boémia
(viu-o noutro dia ali no Intendente e falou-me conversas desconexas
- tinha vindo do Brasil quando estava bem de vida...)
E, por falar em boémia,
onde está ela agora?
Tudo a fechar cedo,
difícil de fazer noite a dentro.
É para o turista dormir bem,
não se queixar do lixo
e de alguma delinquência essencial
a uma saudável boémia.
Bom, já chega...
Na verdade apenas estou com pouca energia
para te tolerar discrepâncias normais
a seres agora vista - finalmente - pelos demais.
Antes só eu e uns poucos te viam,
por entre escombros de decadência
a luz que sempre brilha em ti,
esperança na vida além,
coisas bonitas do escuro,
do silêncio,
da conversa mansa de entendimento.
Vou para a cama,
cansado de te pensar
invés de te viver...
(dá dinheirinho dos turistas
ao bolsinho do português,
dá?)
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